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A Encruzilhada



Quando eu era garoto e morava numa cidade não muito pequena do interior da Bahia, fundei, em parceria com uma das pessoas mais inteligentes que conheço, o meu amigo Zé Dias, uma “entidade” a que demos o nome de ASD, que significava singelamente: Associação Secreta de Detetives.

Fãs de Batman e Robin, sonhávamos com o dia em que teríamos um lugar secreto para guardar os vários apetrechos que íamos comprando aos poucos - canivetes, binóculos, cordas, lanternas - até chegar ao nosso próprio carro personalizado, passando antes, é claro, por walkie talkies que falariam a longa distancia. Sonhávamos com o milagre do celular. Não sei com que argumentos conseguimos convencer uma garota de uns 22 anos a ser a secretária da ASD. Ela recebia telefonemas e recados enigmáticos de um ou outro de nós, repassava a quem indicávamos, anotava o que pedíamos, marcava reuniões às quais só nós dois comparecíamos e nós jurávamos que ela não sabia o que estava escrito naqueles bilhetes (Até o dia em que descobrimos que o pai dela era detetive de verdade e ensinara a espertinha o código que usávamos e que supúnhamos indecifrável até pela SS nazista) Com o tempo adquirimos uma série de objetos ultra necessários ao nosso ofício: uma boa lanterna, uma bússola vagabunda, uma faca de pescador, alguns apetrechos e já tínhamos idéia de quantos meses seriam necessários para comprar os tão desejados e necessários walkie talkies. Escondíamos os objetos menores em furos que fazíamos nos muros da escola, em lugares recônditos, e todos os dias após a aula, pé ante pé, passávamos para ver se ainda estavam lá.

Compramos um livro que ensinava uma técnica de karatê e praticávamos depois da aula até escurecer e tínhamos certeza de que ficaríamos quase tão bons quanto Bruce Lee se treinássemos bastante. Adquirimos “O melhor Vendedor do Mundo” de Og Mandino e “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas” de Dale Carnegie, quando não sabíamos o que era auto-ajuda. Ouvíamos música popular instrumental, tocada por aquelas big bands americanas, líamos tudo que nos aparecia pela frente sem nenhum critério e nos achávamos eruditos. Tínhamos certeza absoluta de que éramos os caras mais inteligentes da escola, mas nunca perdíamos tempo tirando notas acima de 7, pois tínhamos mais o que fazer. Quando eu repeti o 2º ano foi um deus-nos-acuda lá em casa. È que a minha preocupação era tirar nota média e eu acabei vacilando. Economizávamos como loucos para assinar o jornal A Tarde (Um dos melhores da Bahia) (esqueci de dizer que somos baianos e tudo isso se passou em Vitória da Conquista, a melhor cidade do País) e parecer informados. Imitávamos a SHIELD, uma revista em quadrinhos da Marvel e a logo da ASD era inspirada no escudo daquela organização. Adorávamos o Homem de Ferro e sua corporação. O Planeta Diário era um sonho. E tínhamos certeza de que teríamos a amizade do delegado da cidade e o chamaríamos na intimidade de Gordon.

Os Radicais Livres levaram ao extremo a idéia de agrupamento secreto ou não secreto, atuante e organizado, que acalentei na adolescência. Os Radicais Livres, que a princípio chamei de Ordem dos Templários, até perceber no Google que havia milhares de sítios e agrupamentos com esse nome, são minha razão de viver. Minha melhor idéia. Meu melhor poema de amor. Meu time do coração. Minha cachaça. Meu pó. Minha papoula da índia, minha flor da Tailândia. Meu sex and drugs no episódio quatro do Radical Rock.

E tudo que imaginei para a ASD virou uma estranha e maravilhosa verdade com os Radicais. As pessoas falam de nós em todo o Distrito federal como “a coisa” underground do momento, um negócio contra cultural, um fenômeno paranormal, um mito, um misto de punks, nerds, beats, gays, bad boys, anarquistas, bichos grilos, mistificadores e afins.


Nosso slogan é “A tecnologia da Mistificação”.

Nosso grito de guerra é “Se lasque, doido”.

Nosso lema “Quem conosco não ajunta, espada”.

A frase abaixo do nome do nosso jornal é “Antes que os homens virem macacos”

O mote do Radicalrock é “Um cons(c)erto na periferia”.

E pra não chocar os mais sensíveis a frase no nosso portfólio abaixo do nosso nome é “A arte como caminho...”

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Amo ser Radical Livre. Sempre achei que formávamos uma confraria espontânea, detentora da capacidade de debater qualquer assunto, com tal arrebatadora paixão que pudesse parecer, a quem nos ouvisse de longe, que estávamos a defender a própria vida naquela absurda argumentação. Porém, mal nos afastávamos uns 30 metros do lugar da disputa e já estaríamos a falar putarias benfazejas, sem pejo ou sentimento de culpa, pelas esquinas enviesadas da nossa suburbana san sebas.

Achei que, deste fervente caldeirão literário surgiria, é claro, o novo movimento cultural de Brasília e certos caras - que não posso citar aqui, pra não inflar os egos já devidamente assoberbados dos mesmos - viriam à boca de cena carregados duma pletora de erudição inconfundivelmente periféricas, dado o desordenamento mental natural em função da origem dos meliantes, porém, que vigor! E que tenacidade nos grunhidos prenhes de lucidez que estes selvagens ilustrados bradariam pelos descampados do altiplano.

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Qual o quê! Uns tantos ditos radicais dotados de ultra-sensibilidade disseram não poder sofrer com tanta maledicência e, aos poucos, foram afastando-se do malfadado convívio com a língua de trapo daqueles que julgavam ser exatamente essa seca ironia, o mais fino biscoito produzido pelos Radicais Livres. O espírito revolucionário que movia essa parte dita diabólica dos grupo e que nunca foi entendida pelos ultra-sensíveis era, na verdade, a que construía, a que movia, a que tombava montanhas, a que revirava ruínas á cata de estranhos tesouros, a que se entranhava trágica no estudo da condição humana, sem medo de cair no ridículo de não encontrar deus no fim da extinta luz do túnel inesgotado, por serem donos de uma natureza brutal nunca jamais nem never more vencida pelos embates da guerrilha onde empunhavam corajosamente a espada cega da língua portuguesa em seus poemas e canções de próprio cunho.

Fomos, por conta dessa falta de pudor ideológica que nos guia, lançados como Daniel na caverna dos leões e lancetados no canto da jaula da luta partidária, pelos guardiões da verdade inexistente, por desrespeitarmos a ordem imposta pelos detentores da bandeira dita socialista já manchada pelo barbudo e outros asseclas pelo pragmatismo que permeia as maiores conquistas eleitorais dos últimos anos e, descortinando um novo horizonte de possibilidades enviesadas pela desestrutura da nossa desdidática desprovida de método, não sabendo que era impossível o que almejávamos, nós, os historicamente desalinhados, os ideologicamente desaparelhados, os metodologicamente desamparados, os filosoficamente descamisados, os boquirrotos, os palhaços, os bobos da corte nos tornamos, a pouco e pouco, a elite cultural do gueto sem saída

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A preocupação com arte e cultura que deveria ser a tônica das nossas atividades perdeu força para as elucubrações político partidárias e ideológicas. A possibilidade dos membros terem variadas posições partidárias indo da esquerda à direita sem maiores empecilhos passou a ser heresia sendo vedada a mim, inclusive, a possibilidade de me filiar a um partido por conta de mesquinharias partidárias. Passou-se disto a um verdadeiro proselitismo em busca de fortalecimento de uma “tendência”. E então éramos dois monolíticos blocos lutando por posições dentro da Associação.

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Chegou-se então a uma encruzilhada e eu, abrindo mão da minha naturalíssima verve diplomática, devo ser sincero, franco e rijo. Eu percebi que o mundo está aberto para nós, ávido de ser conquistado e regido, quando disse no hit “A Bola Azul” que “Serafins povoam minha solidão desgovernada, mas eu só vejo sombras e fantasmas desembainhando espadas” e denunciei que nós, habitantes do gueto, insistíamos em permanecer nesta eterna e maldita autovitimização, onde o dito “burguês” “em tese”nos exploraria e nos manteria debaixo do seu tacão pelo puro prazer de nos atazanar.


Palhaçada! Se nós o que queremos é ser burgueses e comprar um carro zero á vista! Babaquice! Paralisados no esquema que nos auto-impusemos, vivemos na órbita dos ídolos passadistas da bossa nova e da MPB e esquecemos que a melhor canção é a que pulsa inédita da nossa boca ressequida e o melhor poema é o que nós mesmos compusemos pra declamar cheios de orgulho no palco de madeirite erigido por mão-de-aço no lugar onde outrora havia um pelourinho na frente de uma senzala segundo Edvair Ribeiro e hoje se ergue um altar à deusa contradição.

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Faço a revolução com meus companheiros há sete anos! Desde o momento em que pusemos aquelas duas caixas de som que mais parecia duas casas de marimbondo na rua e inventamos de ressuscitar a palavra sarau por esses rincões que fazemos a revolução. E, portanto, ela não virá porque já veio.

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Astuto, cauteloso, romântico, ilustrado e soberbo, um grupo mameluco se pôs de pé ás margens do rio São Bartolomeu na luta pela liberdade de ocupar os espaços públicos e falar brava e serenamente os mais belos poemas da língua pátria sem se importar com o déspota de plantão. E não há tempo para parar. Não há tempo para analisar se o que foi dito está direitamente dito ou se a desordem perpassou de alto a baixo o feito prejudicando o entendimento. Não espero nem mais um minuto por quem quer que seja que não tenha em mente que este é um movimento de libertação das amarras que nos prendem ao conformismo. Abaixo as imposturas! Abaixo a covardia! Abaixo a tergiversação! Avante, companheiros da primeira e da última hora. Franqueza e lealdade serão nossas bandeiras. Mas não nos deteremos diante do populismo que grassa em nosso meio. Se lasque doido. Eu quero é sangue. Eu quero queimar o bezerro de ouro do capitalismo no pátio do aquário bar. Eu quero enforcar os detentores dos podres poderes com suas próprias gravatas. Eu quero tomar o poder à força das nossas palavras e dá-lo aos destituídos de honra da comunidade. Vamos comer o banquete dos poderosos com as mãos. Vamos por os cotovelos descascados sobre a mesa dos déspotas e riscar poemas sobre a mesa de mármore dos príncipes de mentira que teimam em reinar sobre nós, os verdadeiros donos de tudo. Vamos ocupar sorrateiramente todos os espaços que os vacilões deixarem vazios, com inteligência, educação, competência e qualificação. Vamos bailar a valsa em seus salões e saborear seus petiscos misturando-nos ao ponto de confundirmo-nos com eles e quando menos esperarem, zás.

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Suporto tudo com calma e serenidade. Vide minha canção “O Minotauro Protestante” que está postada no meu blog Dagomeh.blogspot.com. Ali descrevo o alto grau de paciência que me acomete desde sempre e isto é fato comprovado por todos que me conhecem. Ali descrevo que a única coisa que me tira do sério é quando dizem que eu erro. Pois eu não erro. Eu não erro. Eu uso tons dissonantes. Mas há uma outra coisa que me faz perder a calma. É a burrice. Não a ignorância, que isso todos seremos sempre, por mais que aprendamos. Falo da incapacidade de entender que assola um sem número de pessoas que nos rodeiam. Como aquele personagem de programas de humor, o Saraiva, eu não suporto imbecilidade e hoje, a meu ver, este é um dos maiores problemas dos radicais Livres. A falta de leitura. A falta de estudo. A falta de entendimento do que se lê e se estuda. A falta de compreensão estética. Um outro problema é que eu não sei como acabar com esse problema. Um outro problema é que eu não posso dizer isso sob risco de ser tachado de preconceituoso. Um outro problema é que eu não gosto de parecer preconceituoso. Adoro parecer politicamente correto. Mas não sou. Eu penso barbaridades e teço maledicências, mas tudo em segredo. Eu sou mau.


Penso em voltar pra Bahia e recomeçar a ASD. Acho que ainda encontro minha velha lupa ou meu manual de caratê nos furos do muro da minha velha escola. Acho que sei onde meu amigo Zé mora. Devo ter o suficiente pra comprar aqueles walkie talkies...

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